quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

palavras são gametas
monstros com três tetas
chafurdando na lama
do poço de dentro

as retinas vão aos ossos
vistos de fora para o centro
mergulhados no mesmo
abismo bestial

e vivos obra e observador
são parte do jogo
pacto fraco
ou ardor franco

coabitam mundos
íntimos e difusos
absurdos e compatíveis

como preto e branco
em algum momento
convergem ao mesmo ponto
rabisco e visgo

um é o embuste
outro papel de embrulho
de olhos e letras
faz-se o não dito.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

ontem estupramos
a pobre e inocente poesia
que suou quase calada
nos respingos primaveris
das bandas do planalto

não se assustem!
nem foi tão a seco!
metemos-lhe o cuspe
sem carinho e a esmo
nos fartamos!

abusamos dela
literalmente
e ali cuspida,
gozada e surrada,
parecia entregue, morta

mas pasmem,
“ela não morreu!”
tal qual seu par
o velho rock in roll
aguentou firme
virou a cara
e deixou-se levar

foi pedofilia rimada
armada em
palavra, revólver
e concreto
na cidade do desperdício

hei, João!
apruma e cura-te
da ressaca moral
dos verbos ressecados
de Ferreira Gullar

avisa pro pessoal
no Salute
que a poesia jaz-viva
e tomamos dela
toda noite de quinta
com café e versos
fodidos, torrados e moídos
na hora!

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

o silêncio que precede o gozo

sua expressão
chorosa
mal suporta
o pulsar de de teu desespero

palpita entre dois mundos confusos
tênues, obtusos,
frágeis e necessitados de si

asas pares
em vôo rasante
rumo ao infinito incerto
desagregadas e tuas

vidro
pedra
sombras

nativas ativas, vãs,
voam

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

enquanto viva
cedi aos ardores da carne
e da palavra estuque
por não ser pedra

vertente desaforada
labirinto de tímpanos torpes
e clarevidência disforme
na retórica inflamada

enquanto morta
entalharam-me em cera
para que o semblante
parecesse vivo

boca torta, noite escura
sem porta, nem dentadura
só a ditadura do silêncio
nula e crua em sonhos de papel

ergueram-me sobre um andor
que aponta para o topo do porém
tiraram-me a língua como castigo
por não me calar, como convém.

domingo, 29 de agosto de 2010

o rei de olhos vesgos

como pôde meu rei
ir sem dizer adeus

foi cedo
mais cedo que todos
sem sussurro
sem chorar

deixou-m um filho
bastardo filho

só príncipes morrem assim
e só era rei aqui

temi pelo dia que
choraria nosso fruto
e chorei

vi os olhos cinzentos
e me perguntava o motivo
não sabia que era morto também

inconsolável dor
ontem nasceu
morreu-me feto

o filho do rei de olhos vesgos

hoje tenho-os tortos
um que me olha o chão
outro que me escuta o umbigo.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

ensaio vermelho

canção tingida
encarnada boca rija
chicote ímpio
das esquerdas, de paixões
devassidões e taras
conjugar-te rubro
flameja-me escarlate.

terça-feira, 29 de junho de 2010

meus terços

não me peçam nada
é o que tenho
de quarta a segunda

que me lembrem nas terças
apenas na terceira hora do dia
em trinca de hora

e que não precisem de mim
nas quintas
nunca tenho dinheiro

nas sextas
estou bêbado
caído

aos sábados sou da família
e aos domingos do banheiro
ou do puteiro

não me dou nem pela metade
oro para que me esqueçam
aos poucos.

sábado, 29 de maio de 2010

a lúcida em mim
crucifica meu ser
administra mentiras
tenta ser correta
ser tão concreta

a lúcida em mim
afaga e engana
precede e o consente
meia volta
pra recomeçar

a lúcida em mim
sufoca o precipício
a lúcida em mim
parece não existir.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

incisivo

I
cortante movimento de prazer
sob ele curvam sólidos
refestelam líquidos
pervertem aborrecidas virgens
em solstícios sexistas

entre lábios e clitóris
confronta a sede dialética
coincide e confunde-se
em exultações e rigidez

conas e bocas são iguais
entre incisivos subvertem
vigoram como armadilhas
e caem em ciladas
misoginias e outros jogos

entregam-se à gula
não têm pudor
vingam-se em emboscadas
de desejos e gana.

segunda-feira, 29 de março de 2010

canino

I
mordedura revelada
sem ater-se à presa
ou à agonia
do olho dilacerado

quatro lâminas a se tocar
nas pontas afiadas saboreia
a devoção ao sangue
refestelada na língua

entrega-se aos recortes
miúdos e quase mudos
à dor alheia
à liberdade entre os dentes

e ao nocauteado resta a lona
os caninos cravados
na nervura da carne
do confete rubro no chão.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

parábola

em outras eras
lancei-me
subi o quanto pude
projétil e palavra
a esmo
sem ter-me

e divaguei na
vertigem vazia
da queda

qual pedra
ao encontrar
o solo

quebrei-me
em mil
para estar
no centro

e o repuxo
fez-me inércia
que na descoberta
sempre pede
a dor
do chão!

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

cimo

sou querer empírico
responsabilizada de ser
resvalando-me na inércia
de não ser

tento abrir as portas
que me afastam de mim
mesmo condenada
à liberdade insólita
do não poder
cimo

épica e lenta descoberta
corrompida pelo ego
qual Sísifo interno-me
eterna jornada
no subir e descer
da pedra.